CARTINHA

 




Há muito tempo, em uma tarde ensolarada, em uma primavera, eu e os meus pais saímos para visitar uma região. Meu pai entrou no carro, depois a minha mãe, depois eu. O silêncio. Dentro da minha cabeça eu não lembro o que eles falavam. O silêncio é imenso aqui. Mas depois que o carro começou a percorrer a estrada, eu escutava os pássaros mesmo com as janelas fechadas: eu os via entre as árvores e no céu voando abrindo as suas asas perto dos galhos, a sombra perto de mim, de todos aqueles milhares de pássaros e o sol, quando meu pai grita. Depois disso acordo entre as ferragens e alguém me tira do negro. Um helicóptero perto de uma fonte. Uma enfermeira me enrola em uma toalha. Eu tinha quatro anos de idade e o caminhão que destruiu o meu pai e a minha mãe naquela tarde de quase sol, – eu disse? – , também era o sepulcro.

Quando cheguei ao hospital não tinha um arranhão. Nada, nem na cabeça. Puseram-me deitado. Eu chorei. Não perguntei pelos meus pais. Eu chorava porque alguma coisa dentro de mim dizia que a minha vida iria mudar. Eu não gostava de mudanças, nem aos quatro anos nem agora. Então me levantei, abri a porta do quarto, era de noite. Saí pelo hospital, percorri e dobrei corredores. Quando estou perto da porta, uma enfermeira me pergunta o que eu estou fazendo. “Vou encontrar a minha mãe ali fora.” Ela me pediu para esperar. “Espera, não saia daqui!” – ela disse. E volta com algumas balas e chicletes. Eu agarro sem agradecer, abro a porta, e estou na rua. Com quatro anos de idade a minha cabeça não pensava com a amplitude, mas no pouco que pensava possuía velocidade. Sabia que a minha condição física – do bicho mais fraco da cadeia alimentar – era perigosa para os órgãos genitais. Não sabia para onde ir, então procurei me esconder dentro de uma lata de lixo. Não gostei daquilo e saí da lata de lixo. Caminhei pelas ruas. Fui para o parque. No parque encontrei Sonja. Ela estava enfiando uma agulha no braço. Quando me viu não fez perguntas, me pegou e levou para casa. Quando cheguei à sua casa eu não possuía muito vocabulário, acredito que Sonja era uma pessoa educada, mas que falhou na vida. Eu, por direito, hoje entendo que não escolhi falhar. Mas só posso responder por mim. Não entendia muito o que ela dizia, mas me perguntou se eu estava com fome. Eu disse que sim e que tinha um plano. Ordenei Sonja que me vendesse para alguém em um continente distante. Fiz um sinal para os meus bracinhos mostrando que ela precisava de dinheiro para mamar. Uma semana depois eu estava atravessando o Atlântico e chegando à terra chamada América.

No meu aniversário de cinco anos eu ganhei um cachorro, logo as outras crianças me cercavam e eu os obrigava a entender que deveríamos trabalhar. Os meus pais adotivos me levaram em um médico porque o meu único interesse era brincar de ganhar dinheiro. Quando eu fui para o jardim de infância nas aulas de pintura só utilizava a cor preta. Mas quando sozinho com alguma menina eu brincava de marido e mulher, casamento, arco nas flechas. Um dia eu e um grupo de amigos cheiramos açúcar no refeitório e fingíamos estar trincados. Aquilo era engraçado, umas cinco crianças falando rápido. Cerrando.

Meus pais adotivos se renderam e compraram para mim um terno. Os meus amigos vinham me visitar e falávamos apenas de como sabotar as nossas famílias. Então decidimos ligar fios desencapados nas camas dos nossos pais. Eles descobriram e nos internaram em um hospício para crianças.

Glória plena. Neste lugar encontramos adultos desengonçados, assustados, e enfermeiras pedófilas que em troca do silêncio nos imploravam pelo amor de Deus. Conseguimos fazer uma estrela de cinco pontas no meio do pátio. Acendemos velas. O que deu errado. Foi então que eu e as outras crianças no meu aniversário de sete anos gritamos pelos nossos pais. Sem corpos para entrar, com medo do além.


Comentários

Postagens mais visitadas