ENTRE O VÉU E O CAGALHÃO

 




Escutei um espírita, ou ex-espírita, debruçado no balcão do bar e esganando copos de cachaça, postular que somos um espírito que possui um corpo. Não o contrário. Eu olhei para ele e perguntei que diferença isso faz se quem grita na hora da topada sou eu.

Segurando o copo embaçado – calor da mão, suor ou hálito –, com a porra do dedinho em riste, ele me diz que, antes de virmos para a Terra, passamos por um véu que nos faz esquecer nossa verdadeira identidade. Daí vivemos por aqui, fazendo todas estas coisas que todos os seres humanos fazem, e, quando morremos, passamos outra vez pelo véu, só que desta vez esquecendo de quem éramos.

Esquecer. Este bar deve fazer parte desse véu – pensei e continuei a beber, olhando as garrafas na prateleira. Secas, empoeiradas, a radiografia das costelas de um dinossauro sem cabeça e morto.

Ele pediu outra dose. Matou de um gole só e disse:

– A minha mulher pediu pra foder ela na bunda!

Cadeiras se arrastaram. O kardecista capturou a atenção dos outros fregueses. Senti o cheiro de mijo de um ônibus dando a volta ao mundo cheio de mendigos quando a porta do banheiro abriu.

– E o que você fez? – Um homem com a cabeça e os ombros cobertos por um pó branco, fechando a braguilha, respirava com dificuldade, mas exaltado. Como se cada inspirada de oxigênio o ajudasse a caminhar.

– Eu enfiei!

– AHÊEEE! – Um outro ergue o copo, celebrando, babando mil e uma Scheherazades.

– E fui enfiando, enfiando – continuou o espírita – , e quando o meu saco estava prestes a estourar, como quem crava uma estaca num porquinho... Escutando o meu coração bater nos ouvidos... Eu... Eu guardei isso aqui!

Ele tira um embrulho do bolso do paletó. Os olhos vidrados, iguais a duas bolas de bilhar lavadas debaixo da torneira.

E põe o embrulho em cima do balcão. Úmido. Ondas de calor subiam dali. Uma mancha marrom com gotículas vermelhas cobria o papel, a asfixia de todo o segredo. Ele afasta o copo e abre o embrulho. O cheiro nos violenta como se fossem os espíritos saindo da arca naquele filme do Indiana Jones.

Um bêbado, na mesa do outro lado do bar, começa a vomitar. Todos vomitam.

Eu não.

Tapei o nariz com minha camisa suada e, chegando mais perto, fiquei ali parado, entre o véu do esquecimento e o cagalhão.


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