CORTE SEM FUNDO
“Por que dizer que eu tenho que recuperar a vontade de viver é errado? Muito simples. É errado porque não é isso que você quer recuperar. Afinal, por mais na merda que a pessoa esteja, ela já está viva. Seria a mesma coisa que dizer: 'estou com muita vontade de ter dentes' enquanto se olha no espelho com a boca cheia de espuma, escovando aquela porra como se fossem as presas de outra pessoa. O que se tem vontade não é de viver, mas de fazer alguma coisa que se goste nessa vida: chupar a palhaça, viajar, oferecer o ranchinho, sair para a rua e gastar o dinheiro que não se tem, torrar o que te resta de matéria, de fé, enlouquecer no gozo louco — igual a uma minissérie-novela na net-tv. Não do outro lado da ponte, com o anel ardido e esquecido — feito um Siegfried pensando que é mamulengo, rebolando com nibelungos —, mas debaixo do divino arco-íris onde não há nem chuva nem sol, metendo o ouro no Reno — até transbordar.”
Não tinha dinheiro. E não queria esperar.
Esperar para quê? – adorava o doberman. Como era uma raça quase extinta, vendeu assim que anunciou. Às lágrimas, pôs o bicho trocado pelo pó das Kapital em cima da mesa e cheirou.
Gostoso, gostosa. O nariz apertadinho, apalpava a garganta.
Será que eu estou com câncer?
Como é que é ter o que não dá pra ver e quando se vê já se tem?
Silogismo. Paranoia. O que é o que é?
Não dá, sabe…
Ai que vontade de morrer!
Vamos operar?
Vamos.
Com uma lata de goiabada o travesti arrancou o pau. ZRAP! Deu aquele frio. Zonzo. Impulsivo. Tampando a sangueira com papel higiênico, heroico afirmou, levantando o punho avermelhado: —Amanhã na macumba revelo! De hoje em diante me chamo Mamé!
Amanhã nada: esse tipo de corte demora a cicatrizar.
E;
Mal sabia que, para uma baiana, não adianta
esquecer do saco.
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