O BICHO

 






Todos pareciam peixes procurando migalhas de pão. Na superfície – as prateleiras. Na fila do caixa quando ele se abaixa a encosta. Os cotovelos se tocam, acho que em um osso.


    • Desculpa – ele diz.


Ela apanhava uma revista – Não, a culpa foi minha. 

Percebeu que tinha duas opções e estas duas opções tinham que ser decididas em frações: continuar a conversa ou ficar quieto. Teria coragem para continuar a conversa, conversar com uma mulher em um supermercado às 12:30 da tarde? Desconfiaria ela de qualquer maluquice desarticulada, perdida, que saísse da sua boca?


    • A culpa foi nossa – ele diz. Quer dizer. Não há culpa; duas linhas se encontraram em um ponto no espaço, se cruzaram, é a lei da probabilidade ou destino.


Ela ficava ali. E o chinês na sua frente mostrava o passaporte para a moça no caixa antes de pagar.

Ele continuou a conversa, seu nome era Mördare, e disse: "Quer almoçar comigo?"

...

Caminharam até o seu apartamento. Quando abriu a porta notou que parecia mais escuro do que costumava ser. Era outono e a luz de qualquer forma não durava mais do que algumas horas. Quando ela entrou viu uns quadros na parede, manchas de tinta pelo chão, o cheiro de cigarro, o sofá, e dois abajures, as únicas fontes de luz. Ele notou um broche no casaco da moça que o incomodou. O garfo de cabeça para baixo, que na década de sessenta os Hippies chamavam de símbolo da paz. Isso não o enganava. Sabia que era o garfo do Diabo que alguém retirava de dentro da terra e por isso era representado de cabeça para baixo. Encheu a comida de sal. Tanto tempo sozinho tinha muito para conversar que nem deu tempo para a moça falar. O que fazer depois que ela terminar de mastigar?

Ela começou a achar aquilo tudo muito esquisito, desconexo. Não se conversa assim. As janelas fechadas, as cortinas dançando pelo soalho. Nenhum ponto de luz. E a porta parecia um quilômetro distante – fincada naquele corredor.


  • Café?

  • Você tem chá? Tenho.

  • Eu prefiro chá. – ela diz.

  • Eu também.


Enquanto a água ferve, ele percebe que os olhos da moça haviam mudado. Ela estava triste, ou desapontada. Como ele deveria também ter apostado na aventura do amor, do prazer, da diversão. Encontrar alguém interessante, mas o que parecia interessante agora a amedrontava um pouco, não chegava a ser muito medo, mas um leve desconforto, quando viu uns bichos estranhos se escondendo com seus pequenos tentáculos nas pernas do fogão.


    • Aqui o seu chá.

    • Obrigada – ela diz.


Ele a toca pondo a xícara a sua frente. Ela se retrai. A falta de contato humano, de contato com outro corpo, durante o que ela supunha ser muito tempo, se não o fez esquecer como o movimento entre corpos funcionava pelo menos criou em volta do seu corpo uma casca fria e grossa que ela sentiu com repulsa quando a sua mão a encostou - uma mão gelada. O cotovelo mascarado pela jaqueta de couro que a esbarrou no supermercado pareceu melhor.

E o hálito? Quando ele chegou perto do seu rosto para tentar um beijo, ela parecia estar perto de um bicho em uma jaula molhada mergulhando em resto de comidas – mais precisamente verduras.


    • Eu tenho que ir embora – ela disse.

    • Mas já?

    • Eu tenho que estudar.

    • Está bem. Vamos nos encontrar outro dia, para um café na cidade?


Trocam telefones. Ela o escuta dizendo os números esperando que ele não peça para ela ligar para que tenha o dela também, porque os números que ela escutava não era o que escrevia - pressionava qualquer outra coisa em seu lugar.

Antes de sair ela pergunta quem pintou isso. Foi eu – ele responde. E bate a porta. Fica ali observando a pintura. Mancha preta com um furo. Nervoso, a tremedeira da mão sempre forçava o pincel na tela. Não ia para lugar nenhum fora do meio do quadro. Pelo menos os judeus quando fugiram do Egito tinham algum lugar para ir.

Tudo é silencio que logo acaba quando entra no quarto. Som de catarro preso.


    • Já acordou? – ele diz olhando para o relógio.


Um bicho gordo e melado de um pouco mais de um metro e setenta e cinco está sentado na cama derretendo em gosmas escurecidas.

Tentáculos movem-se no ar pesado e escuro. Outros bichos, umas larvas, rastejam para debaixo da cama quando a luz acende. O único furo na cabeça do bicho que come flocos de poeira, trazendo a sujeira para a sua boca, pede para que ele entre e feche a porta.


    • Entre e feche a porta!


Se esforçando para que um dos tentáculos invertebrados se modifique, tenta mais uma vez, aquele sinal de papo firme.


    • É assim que se faz – ele mostra esticando o polegar.

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