COMILANÇA

 


*COMILANÇA



Blasfemando. Tarde da noite. Trancadas. A barriga roncando. Enquanto a mãe e o pai também passavam fome. Duas crianças conversavam:


    • Se eu soubesse que iria encontrar a paz nupcial, sair dessa vida e continuar noutra melhor, eu me acabava!

    • Ai AI!! – gritava o irmão repreendendo – só de pensar...isso já te fode, maninha!

    • Escuta, João! O que eles estão falando! – Maria, um pouco mais velha, chupava o dedo.


O menino abre devagarzinho a porta do quarto feito de cartolina e pau podre e percebe o pai e a mãe rangendo os dentes na cozinha! Chovia. Misturando lama ao arado estéril. Os pais conversavam:


    • Não tem comida para todo mundo!

    • E o que que a gente vai fazer, homem? Esperamos ficar igual aquele avião que caiu na montanha gelada? Fazer um sopão das nossas partes?

    • Comida para dois sempre tem!

    • Somos quatro!

    • Então...

    • Então o quê?


O homem aponta para a lata de chumbinho. O que à meia luz lembrava o esgotão de Niterói: “ Dê um abraço em teu padrinho! Vamos acender velas pra São Jorge!”


    • Meu amor, escute... Infelizmente temos que matar apenas as crianças! – diz a mulher.

    • Eu também havia pensado nisso... Nunca imaginei que fôssemos chegar a este ponto!

    • É... mas no final das contas...

    • Criança sempre dá para fazer de novo!

    • Triste esta decisão!

    • Muito!

    • Porém, quem morre cedo nunca sabe o que perdeu mais pra frente!

    • É, vamos lá matar! É só esfolar! Assim... e assim! – fazia Xzes com o punho fechado no ar. – É só pensar que são porcos e galinhas!

    • Agora não, levaremos os dois para a floresta, amanhã cedo.

    • Dá um aperto no coração!

    • Dá, no meu também!

    • Mas é melhor assim.

    • Claro que é!


Escutando o plano pérfido vindo da cozinha, as crianças não perderam a esperança. Melhor do que os vagabundos dos incas segurando corações na frente desnuda do sol, o sacrifício deles pertenceria a um universo mais Bíblico, dissimulado. Nesta altura, o abandono seria igual uma viagem perdida pelo deserto. Imaginem só: floresta, deserto, incas, acelera Ayrton! é sempre alguém respondendo pela merda que os outros fazem, mesmo que seja por acaso; um tempo nublado, um eclipse, uma seca braba, a voz de Deus, um acidente. É daí que João, o moleque faminto, tem uma ideia!


    • Maria! Vigia a porta que eu vou pular a janela e aproveitar a luz da lua e catar as guimbas de cigarro do pai!

    • A gente vai fumar, João? Fumar para acalmar?

    • Não, amanhã na floresta eu te mostro!



ZIRIGUIDUM



A floresta seca semiaberta ali na frente igual uma bolsinha. Convidava. Vem se perder criançada! A mãe ia na frente de mãos dadas, quase do mesmo tamanho, João de um lado, Maria do outro – seriam anões? O pai atrás. Ia só cercando. Carregava um machado. Calha do instinto novinho dizer “Corre!” no fundo é tudo bicho. Uns pressentem mais o perigo outros menos. Mas todos são capazes. X-mans. Wolverines. Bicha azul. Mudam de forma. Com esses raios descontrolados vindos dos olhos. Da alma. Feito de chuva, pau e pedra. O caminho era de barro. E por ser esta a nossa origem. Doía a cada passo o pedaço da costela que faltava.


    • Meus filhos, ajudem mamãe! – disse-lhes a mulher, limpando a mão na saia – vamos fazer uma fogueira enquanto papai trabalha cortando o mato!


As crianças catavam gravetos nem se importando se eram verdes. Divididas. Meu reino por um cavalo. Uma parte delas queria ficar perto da mãe mas a outra queria dar no pé. João excitado e nervoso rebolava aos comichões com as guimbas de cigarro emboladas na cueca.


    • Tá maluco menino? – a mulher apertava a barriga roncando de fome não conseguindo esconder a irritação do que lhe parecia ser a alegria de uma criança dançando – Dançando por quê?

    • Bicho na cueca, mãe! Essas formigas maldosas! – ele mentia.

    • Sei... – disse-lhe a mãe desconfiada e logo em seguida dirige-se à filha – Maria! toma conta do seu irmão que eu vou pegar o fósforo!

    • Fósforo para quê minha mãe?

    • Para alimentar o ar com o fogo!


A mulher some atrás do mato alto e das árvores secas, riscadas por unhas, das muitas crianças por ali abandonadas. Aqueles arranhões... quase silenciados... : “PUT THE FUCKING LOTION IN THE BASKET!” … pelo barulho do pai sentando o machado nas folhagens, sem cortar merda nenhuma.


Maria virando-se para João arria-lhe o short. Ele se assusta e se tapa, se segurando para não cair de cócaras, com algumas guimbas de cigarro coladas na virilha do mesmo tamanho do peru encolhido ainda mais pequeno.


    • João, a nossa mãe sumiu! Acho que eles mudaram de ideia. Não vão mais nos matar!

    • Ai, ai como coça! – o menino batia o resto das cinzas e das quimbas se limpando.

    • E esses cigarrinhos? – lhe pergunta Maria.

    • Eu pensei em usar para marcar o caminho de volta caso a gente se perdesse!

    • Mas agora já estamos perdidos! – disse a menina, prendendo os cabelos que desciam até a cintura.

    • Eu esqueci! Me deu nervoso!

    • Não tem problema, irmãozinho! Eu escuto o barulho do machado do pai!

    • Eles estão perto! Daqui a pouco mamãe volta com os fósforos!

    • Me ajuda, João a limpar estas guimbas, porque de problema a gente está cheio!

    • Desculpa Maria! Eu sou um idiota! Um magricela imprestável!

    • Nos dois estamos magros, João! É por causa da fome!



Chegando a tardinha e cansados de esperar pela mãe. João e Maria, com frio além de famintos, foram seguindo o barulho do machado procurando pelos pais.


    • É logo ali João, escuto papai trabalhando!


Os dois correm atravessando o mato alto deparando-se apenas com o machado amarrado em um galho e batendo, ao sabor do vento, contra o tronco da canjarana.



PERDIDOS



A fome era imensa. Aos tropeções João e Maria vão cada vez mais se embrenhando na floresta em desencanto até encontrarem como se surgido do nada uma casa feita de empada, com azeitonas portuguesas e coladinha com dobraduras de mel e açúcar cristal.


    • Oh, não! João! Olha isso! – Maria se aproxima da casa, turvando-se à sua frente, parecendo uma miragem.

    • Eu sabia, maninha! – diz o garoto lambendo os lábios!


Em cima da porta a placa enganadora:


“Deus Abençoe Este Lar!”


    • É a casa da bruxa, João!

    • E daí? A gente tá morrendo de fome! Vamos dar umas mordidas pelo menos na porta! É tudo empadinha!

    • Mas e se a bruxa nos prender?

    • Prender? Tomara que ela faça isso! Não se lembra da história?

    • Mas será que toda história se repete?

    • Maria, me diga uma história que até hoje não se repetiu!

    • Então a bruxa vai te pegar, te pôr dentro de uma gaiola e você com um rabinho de rato vai enganar a velha cegueta!


João, abocanhando um pedaço da casa, assopra cuspindo farelos!


    • Come Maria! Come!


Maria quebra as casquinhas do empadão, lambe o mel pingando do telhado...


    • E depois... eu … KNOQUE KNOQUE... Eu... empurro... KNOQUE KNOQUE... a bruxa velha pra dentro da caldeira fervendo!


E quando a bruxa sai de casa às gargalhadas encontra de uma vez as duas crianças empanturradas e dormindo. A fome era tanta que não perceberam o gosto um pouquinho diferente da maconha prensada nas paredes misturadas com o sonífero mais potente.


JEITINHO



De manhã cedo. Um homem emocionado e selvagem segurando um machado sangrento aparece gritando no quintal da casa encantada. A bruxa, um pouco mais gorda, pergunta o que ele quer!


    • O que você quer? Aqui ninguém te deve nada! Tá com fome é? HAHAHAH! – Sacode o narizinho pontudo!


O homem já refeito e mais robusto apesar de alucinado, havia matado a esposa e a devorado inteira, e como quem chupa os ossos boiando em um ensopado pornográfico, passava a língua entre os lábios. Molhado e quente o sangue ainda não tão seco também lambuzava o cabo do machado. Enraivecido clama olhando para aquela cara verde e de chapéu. De frente a casa mordiscada. Cheirando a sangue e mel.


    • Minhas crianças! Eu sei que elas estão aqui! Devolve ou eu te mato! – o homem ameaça.

    • Devolver o que já foi dado? – escarnece a malvada.

    • O quê? O que o QUÊ!? – o mundo gira, ele quer acordar mas não sabe em qual cabeça está!


A bruxa dá de ombros e vira-se bruscamente apontando uma das garras!


    • Pode levar! Mas se contente com os cotocos! Porque as pernas delas eu já comi!

    • Das duas?

    • Da menina um pedaço mais gostoso, um pedaço do pescoço!

    • NAAAAAAÃOOOO! – o pai querido avança brandindo o seu machado.


A bruxa estala um dedo e PLUNFT!


Coaxa o sapo magro, esguichando mijo alto, cravejado de agulhas. Sonhando...sonhando... que pula.



LAPA



    • João, acorda! ACORDA!

    • Que foi, Maria?

    • Tive um sonho horrível! Um pesadelo, eu acho!

    • Dorme.

    • Sonhei que a gente era irmão e uma bruxa comia a gente!

    • Dorme, isso é a gula! – o homem se ajeita virando na cama. Procurando a brisa refrescante debaixo do cobertor.

    • João?

    • Porra, me deixa dormir, tava tão bom!

    • Você quer o resto do empadão?

    • Não. Vai lá... come... põe bastante azeite... que fica.... gostos...ssso.



Na cozinha, Maria não faz nada. Apenas enche um copo de água. A água que nunca saiu de lá. Há aproximadamente 4 bilhões de anos. Secando, evaporando e voltando. Quando retorna ao quarto observa o marido como quem observa, amedrontada, um filho. Ele ronca. É um carburador. A cusparada que mudando de ideia se engole. O barrigão que treme quando sobe. O umbigo, o anel do fantasma, sem a caveira. É um leão aprendendo a falar. E esta língua gorda que o sufoca é o fôlego que resta de seu amor. E por isso...


...E por isso amanhã de manhã dividirá o empadão gelado com ele misturando tudo,


goela abaixo,


com um copinho de café.



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